segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Nem obscurantismo, nem prepotência: No processo civilizatório, é preciso fugir dos extremos e habitar nas fronteiras - Pastor César Moisés Carvalho

Prezados,

Paz e Bem!

Reproduzo, neste espaço, um texto — daquele que considero ser, atualmente, um dos pensadores pentecostais mais culto no Brasil — do Pastor César Moisés Carvalho devidamente autorizado por ele. Esse artigo é revelador e denuncia que o que se entende por exercício apologético hoje, no mínimo, merece sérios questionamentos.
Devíamos nos perguntar: Para se fazer apologética é necessário ter um "espírito belicoso"? Devemos atacar e desdenhar a fé dos outros em nome de uma suposta fé? Criticar e ridicularizar a religião do outro é "fazer apologética"? A apologética deve ser prepotente ou solidária?  
Se você tiver folêgo, leia e tire as suas próprias conclusões:

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Apesar de viajar com certa frequência, raramente escrevo durante o voo. Em pouco mais de treze anos de viagem e algumas horas de voo, lembro-me de ter feito umas três ou quatro vezes. Hoje, porém, a caminho de Caldas Novas, interior do estado de Goiás, no trecho da ponte aérea tive o prazer de conversar durante uns 30 minutos com o físico brasileiro Marcelo Gleiser (Assim, a extraordinariedade do que estou fazendo agora é plenamente justificável). Os que leem este colunista sabem que Gleiser é um dos cientistas e autores agnósticos (Quando o mencionei como ateu, ele corrigiu-me: “Agnóstico, por favor. O ateu é quem acredita que Deus não existe e tem fé em sua ausência de fé”) a quem mais faço referência, sobretudo por sua visão ética, equilibrada e respeitosa a respeito da realidade. Simpático e extremamente acessível, não faz tipo e mostrou-se surpreso em saber que há boas possibilidades de um fecundo diálogo entre fé e razão nos círculos pentecostais: “É bom saber que há gente como você neste segmento religioso”, disse-me surpreso em certa altura de nosso bate-papo.
Não obstante o “elogio”, sua observação é na verdade um sinal de que o movimento pentecostal tem ainda uma longa caminhada rumo ao diálogo sadio com os diferentes atores que compõem a nossa sociedade plural e diversificada. Isso porque, a despeito de Gleiser ser agnóstico, nos dias 2 e 3 desse mês, participou do XIII Simpósio Internacional do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), em São Leopoldo (RS), proferindo a conferência de abertura, tendo ainda, no outro dia, participado de uma mesa redonda com o professor e astrofísico George Coyne, do Observatório Vaticano e da Universidade do Arizona, Estados Unidos, tratando do tema: “Fé e ciência: um diálogo possível?”. Em termos diretos, outros segmentos cristãos estão promovendo o diálogo visando o entendimento e o crescimento mútuos no processo civilizatório de uma humanidade cambaleante por conta do individualismo que segrega e isola. E nós? O que temos feito no sentido de proporcionar as condições para o diálogo, sobretudo se partirmos do princípio da alteridade, evidenciado no amor ágape, do qual Jesus Cristo é a maior expressão?
Coincidentemente, na última semana, entre os dias 10 a 13, foi realizado no Riocentro, o 7° Congresso Nacional de Escola Dominical, que teve 2.215 participantes vindos de praticamente todos os estados da federação (Havia também brasileiros que residem em outros países). O assunto de minha plenária foi justamente “Fé e razão — Há possibilidade de ambas coexistirem na pós-modernidade?”. Durante o evento recebi das mãos de um dos participantes a revista da IHU (IHU-On-line, n°403, Ano XII, 24 de setembro de 2012), enviada que foi pelo meu amigo Adriano, mestrando em Teologia pela PUC-RS. No periódico semanal, cuja edição tratava justamente do referido simpósio, dentre o conteúdo, há uma entrevista com Marcelo Gleiser, intitulada: “O perigo do obscurantismo e da prepotência”, daí o porquê de o título desse meu texto.
Nessa breve entrevista, Gleiser toca em pontos que abordei no texto de minha conferência. É interessante notar a convergência de nossa visão a respeito da relação entre ciência (razão) e fé, mesmo sendo ele agnóstico e eu, crente (Algo que não deve deixar ninguém espantando, pois se trata apenas de honestidade intelectual de ambas as partes). Chamou-me a atenção a sua resposta à segunda pergunta da jornalista Márcia Junges que indagou: “Acredita que pode haver um diálogo autêntico entre ciência e fé? Por quê?” (p.12). Sua resposta foi precisa: “Sem dúvida. Ciência e fé são aspectos complementares de como compreendemos o mundo e nosso lugar nele, de como encontramos sentido em nossas vidas” (p.13). Em minha palestra, entre outras coisas, falei acerca da importância de se conhecer o milenar debate entre fé e razão, visando entender não simplesmente a própria história, mas também e, mais importante, a estrutura do pensamento ocidental. Em continuidade à sua resposta, Gleiser diz que “nenhum corpo de conhecimento, por si só, pode dar conta da complexidade da nossa existência”, ou seja, a “religião não pode ignorar os avanços da ciência; por sua vez, a ciência não pode proclamar que sabe como resolver questões que, ao menos no momento, estão muito além de sua competência” (p.13). Com isso, o físico brasileiro está dizendo que “é necessário evitar os excessos de ambas as partes”, e que o “perigo é, de um lado, o obscurantismo e, de outro, a prepotência” (p.13). Escrevi algo parecido no texto de minha plenária ao falar sobre o objetivo de minha discussão: “A proposta aventada nesse modesto trabalho caminha rumo a integração e orienta-se pela busca de manter a originalidade tanto da fé quanto da razão, sem que elas se diluam ou que se polarize culminando, por um lado, em racionalismo e, por outro, em fideísmo” (p.28).
Dissertei que, partindo do princípio da missão deixada por Jesus Cristo aos seus seguidores, é preciso produzir uma teologia pública que faça sentido não apenas intramuros, pois, como disse Alister McGrath, apesar de a coerência intrassistêmica ser uma qualidade a ser admirada, “é perfeitamente possível ter um sistema inteiramente coerente que não tenha nenhuma relação significativa [com] o mundo real” (Paixão pela Verdade, p.130). Por isso mesmo, a teologia pública precisa apresentar-se como uma teologia racional, isto é, inteligível, sem, contudo, pretender um racionalismo teológico (p.28). A escolástica na Idade Média e a teologia liberal nos séculos 19 e 20, para citar apenas dois casos, são exemplos emblemáticos e negativos de racionalismo teológico. Condicionar o que se crê ao que é, ou não, científico ou racional é outro perigo, pois como afirma Roger Haight, a “razão é sempre histórica, sendo, por definição, uma ação subjetiva. O termo ‘objetivo’ é temático; descreve a intenção e a meta de estabelecer as coisas em seu aspecto essencial, tal ‘como são’. Caso se pudesse determinar uma estrutura universal formal da compreensão e do conhecimento humanos por meio da análise transcendental, a objetividade seria abordada por ser deliberadamente atenta aos critérios dos vários níveis de evidência, ou seja, por uma subjetividade disciplinada. A razão, contudo, ainda não pode transcender sua historicidade” (Dinâmica da Teologia, p.58).
Nesse aspecto, a advertência de Marcelo Gleiser acerca da questão: “Qual é a relação entre a existência da matéria e da antimatéria com a existência de Deus?”, é extremamente responsável e até auxilia a crença: “Nenhuma. Matéria e antimatéria são aspectos complementares das partículas que compõem a realidade física do cosmo. Buscar por Deus nas brechas da ciência é uma estratégia que leva inevitavelmente ao fracasso; a ciência avança e esse Deus que ‘explicava’ o que não se sabia explicar torna-se desnecessário” (p.13). Os que querem manter a sua fé à custa do respaldo científico, e utilizam a “razão” e, consequentemente, a ciência, para validarem suas crenças e doutrinas acabam frustrados. Não precisa ir muito longe para perceber que o resultado tem sido muitas vezes tão desastroso quanto vexatório, pois o movimento deveniente da ciência (principalmente depois da descoberta do universo em expansão e da física quântica) modifica os resultados, levando ao descrédito os que amarram a fé ou a crença em determinada descoberta como, por exemplo, no “caso da cosmovisão newtoniana”, cuja perspectiva, diz Alister McGrath, “parecia, inicialmente, [com] os avanços da pesquisa científica confirma[r] certos temas centrais do ensino religioso tradicional, como, [...] a doutrina da criação. Mais tarde, o newtonianismo adquiriu tons anti-religiosos, principalmente quando parecia dispensar qualquer necessidade de Deus para o funcionamento do universo” (Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião, p.71).
Na mesma entrevista, o comentário de Gleiser acerca do fundamentalismo ateísta de Dawkins, Dennett, Harris e Hitchens (este último falecido em 2011), é de uma lucidez meridiana, pois reconhece que os chamados quatro cavaleiros do Apocalipse “pecam pelo excesso, pelo uso da mesma retórica virulenta que criticam nos extremistas religiosos”. E complementa: “Todo fundamentalismo é, por definição, exclusivista e destrutivo. Mesmo que muita gente ache que eles representam a posição da ciência, isso não é verdade. Existem muitos cientistas que, mesmo sendo ateus ou agnósticos, não adotam uma postura combativa em relação à fé. Esse tipo de atitude não só não leva a nada como é filosófica e extremamente ingênua. Basta dar uma olhada mais cuidadosa na ciência e em como ela funciona para entender que têm limitações essenciais, questões que estão além do seu alcance. Isso não significa que as pessoas de fé devam buscar Deus nos limites da nossa compreensão científica, mas que os cientistas precisam ter mais humildade em seus pronunciamentos sobre o que a ciência já compreende e o que é ainda mera especulação. Achar que todas as questões podem ser reduzidas ao método científico é privar a cultura humana de outros modos de compreensão. A realidade é bem mais rica que isso” (p.13). 
Uma vez que essa postura evidencia honestidade, humildade, disposição e abertura para aprender e assim compreender mais e mais a realidade, aproximando-se da fronteira do pensamento do outro e não apelando a um ou outro extremo, acredito sinceramente que as mesmas recomendações servem para os que cremos, não simplesmente como medida cautelar, mas também como demonstração virtuosa dos que ostentam a fé e afirmam-se seguidores de Cristo. O texto de 1Pedro 3.14-16 (citado como prescritivo para o “exercício apologético”), demonstra que duas posturas devem marcar os que foram alcançados pela pregação do Evangelho e abraçaram a fé: 1) Resignarem-se diante da possibilidade do padecimento injusto, ao mesmo tempo em que devem se alegrar no processo de sofrimento por amor à justiça; e 2) Reconhecerem a soberania de Cristo em todo o ser, estando assim dispostos a explicar — com modéstia, respeito e boa consciência —, visando promover no “oponente” difamador, não um sentimento de humilhação ou aniquilação derrotista por causa da argumentação cristã; antes uma sensação de agradável surpresa, proporcionada pelo fato de o crente ser justamente o contrário do que diziam (p.24). Esse tipo de apologética testemunhal aponta para um duplo movimento: 1) Dar inteligibilidade à mensagem do Evangelho, ao mesmo tempo em que 2) atua como uma forma de autocrítica (p.28).
O esclarecimento acerca das limitações científicas e, por inferência, da razão, aliado ao fato da distinção entre as crenças (o conteúdo do que se crê, portanto, cognitivo) e a fé (a abertura humana para crer), é o melhor caminho para proteger-nos da mentira de que o ser humano pode encontrar todas as respostas apelando para um ou outro polo. A complementação entre ambas é uma posição obrigatória, principalmente se for considerado a necessidade de uma teologia pública ou apologética testemunhal. “Neste contexto”, diz Hans Küng, “é importante não perder de vista a solidariedade. Toda a provocação e confrontação mútuas em teologia, por mais legítimas e necessárias que sejam, não devem levar à autopromoção, à defesa de interesses particulares, ao isolamento ou à separação. Pelo contrário, deveria conduzir ao entendimento espiritual, a um mútuo enriquecimento e a uma transformação de todos” (Teologia a caminho, p.211).
Finalmente, a última convergência entre o pensamento de Gleiser e o meu que desejo enumerar aqui. Ao dizer que “Ciência e fé devem coexistir e não insistir numa relação de dependência mútua” (p.13), o físico brasileiro com quem tive a honra de uma breve conversa hoje, alinha-se ao pensamento defendido em minha plenária no Congresso realizado na semana passada quando respondi a questão de se era possível ambas coexistirem na pós-modernidade: “Após a descoberta, inclusive de um mútuo reconhecimento, de que nem a fé nem a razão possuem todas as respostas, não é apenas possível que ambas coexistam na pós-modernidade — é necessário! O ser humano faz perguntas para as quais a razão e a ciência não podem oferecer respostas, principalmente para o sentido da vida, por isso o retorno do sagrado e de a fé tornar-se novamente relevante nesse tempo” (p.45).